No dia 23 de abril de 1997, Dia de São Jorge, no auditório do Centro de Convência da UFSC, organizei um encontro do Grupo, com o Contramestre Alemão. O tema deste encontro foi sobre a origem do Grupo Ajagunã de Palmares, de uma bela história da Capoeira da Ilha e de um camarada muito especial: Alemão!
Serei eternamente grata por ter me ensinado o sentido de ser capoeirista!
Aqui vai o relato:
FALA ALEMÃO
“Fiquei surpreso quando a Jô veio me pedir para falar da história do Grupo. Achei legal, porque um pouquinho de responsabilidade de ter muitas pessoas jogando Capoeira a gente tem. Um pouquinho da história para contar para alguém às vezes é bom. É legal também saber da onde surgiu aquilo que estamos fazendo. Às vezes jogamos Capoeira e fazemos qualquer coisa na vida sem saber da onde se originou. No Brasil temos esse costume de não ter história. A história que nos passam no colégio é uma história só de heróis, brancos, só de quem ganhou. Eu acho legal saber um pouquinho daquilo que fazemos e o porquê.
A minha trajetória na Capoeira foi assim: Sou gaúcho e comecei a jogar Capoeira em Canoas em 1978, com um cara que não era Mestre. Em Porto Alegre tinha os Mestres de Capoeira, os caras que davam porrada, os bons da Capoeira, os que batiam em todo mundo e eles eram os semideuses, uns caras que não dava nem para chegar perto de tão Mestres que eles eram.
Fazíamos uma Capoeira lá em Canoas, uma Capoeira assim de qualquer jeito. E cada vez que íamos para Porto Alegre a gente apanhava muito. Os caras metiam a porrada porque não éramos de um grupo. A gente tinha que ser de um grupo de um Mestre. E nosso Mestre era o cara que dava aula para nós e que não era Mestre de Capoeira. Ele sabia jogar uma Capoeira e passou aquela Capoeira. Porque tínhamos que ser de um grupo? A gente achava legal ser assim.
Sempre ficamos a margem da Capoeira que existia desses grandes Mestres de Capoeira. E fomos resistindo com o nosso grupo sem mestre, tomando porrada numas rodas, noutras treinando um pouquinho mais, já dando porrada num e apanhando do outro. E assim nossa Capoeira no começo foi muita coisa de combate, muita coisa de ter que segurar a onda mesmo, jogar Capoeira… e aí, como é que é? Sem muita filosofia, sem muita história, sem muita coisa bonitinha.
Até que em 1982 conhecemos o Mestre Nô. Ele estava lá no sul. E a gente esperava que como o Mestre Nô era da Bahia, ele seria um super-homem e que fosse em todos os lugares onde os caras nos batiam e a gente virasse o super-filho do super-mestre e fosse lá e batesse em todo o mundo. Porque a nossa cabeça era essa, era só pancadaria, não tinha outra coisa. Porque a gente apanhava deles na roda, então era uma coisa meio paranóica.
O nome do primeiro cara que me deu aula era Macaô. Ele esteve aqui no Primeiro Batismo. Macaô depois entrou para o grupo do Mestre Nô e foi morar em Sergipe.
Conhecemos o Mestre Nô! Ao invés dele passar essa história de pancadaria para nós, de ser um super-mestre, passou uma coisa bem ao contrário. Passou um pouco da calma, passou muito de música, passou muito de malandragem. Malandragem no bom sentido, a picardia da Capoeira, o tempero brasileiro da Capoeira. Passou muito isso e vimos que ele tinha uma Capoeira muito legal e que a gente podia aprender muito se juntando a ele.
No final desse ano eu saí de Canoas, juntei uma grana com meu pai e saí fora para ir morar com o meu Mestre. Fiquei morando seis meses com ele lá em Salvador. Eu era filho de classe média, meu pai sempre trabalhou minha mãe também, pude estudar e sou branco. Existe uma história por trás de mim. E fui morar com o meu mestre e foi legal pra caramba porque eu era cheio de frescura, só comia arroz integral e lá comia o que tinha ou não comia.
E foi muito legal porque o Mestre Nô mesmo tendo pouca coisa em casa, o que tinha era dividido com a gente como irmão. E aquilo foi uma coisa que me impressionou demais, me cativou. E a Capoeira para mim, desde sempre, mas muito mais depois de ter conhecido o Mestre Nô, ficou uma coisa muito mais relacionada ao meu coração, ao que eu gosto, aos meus amigos. Os meus amigos eu tenho todos eles dentro da Capoeira.
Hoje eu trabalho em outra coisa, que não tem a ver com a Capoeira, mas que a Capoeira colocou na minha mão, mas as pessoas que eu amo estão no mundo da Capoeira. A Capoeira passa por aí, é uma coisa de irmandade, a gente tem uma história de irmão e é muito legal.
Início de 1985 eu mudei para Florianópolis. Quando eu cheguei à Ilha era muito legal. E tinha uma Capoeira aqui que era a Capoeira do Calunga. Foi o primeiro capoeirista que eu conheci. Numa festa na noite, na Lagoa, naquela época a Lagoa era um asilo, nos encontramos: Daí é Capoeira é? Também jogo. Capoeirista quando se encontra é tudo meio macho assim. Então aparece lá para a gente vê essa Capoeira. Aí eu fui na roda, era um inverno, lá na escola da Barra. O Gerry me chamava de senhor, lembra dessa Gerry?
A primeira relação com a capoeira da Ilha foi com o Calunga. Ficamos amigos. Tinha uma moçada bem legal, tinha o Gerry, Adão, Moriel, o Pinóquio… e o Mestre Pop, o primeiro Capoeira da cidade.
Na amizade o Calunga dava aula na Universidade Federal e tinha começado no CIC. Daí digo: de repente eu fico com a Universidade e tu fica no CIC. O Calunga montou o Grupo no CIC. Foi uma Capoeira muito legal que muito tempo se jogou por lá.
Antes de vir para cá pintou lá no Rio Grande do Sul um Mestre chamado Khorvo. Ele era um Mestre do Rio de Janeiro, Associação da Capoeira Cruzeiro do Sul. Ele era um Mestre muito porrada, muito legal, muito Axé. Cantava umas letras de Capoeira! Ele chegava numa roda murrinha, aquela roda de Capoeira que dá vontade de ir embora correndo, como muita roda de Capoeira que a gente vê por aí. Eu costumo brincar que hoje eu nunca vi tanto Capoeirista de berimbau na orelha, berimbau no colarzinho, camiseta de Capoeira… isso é legal, cada canto que eu vou tem um berimbau, mas infelizmente nas rodas de Capoeira, parece que o ritmo tá meio caído, parece meio caídas as rodas em termos de axé de ritmo. E o Mestre Khorvo chegava nestas mesmas rodas e todo mundo se arrepiava, a roda ficava boa, ficava bom jogar Capoeira, ficava legal cantar naquela roda, ficava emocionante jogar Capoeira com ele cantando, tocando berimbau. Ele tinha esse axé do canto.
Eu e o Calunga vimos o Mestre Khorvo magrinho, no hospital lá no Rio. E esse Mestre disse para eu colocar o nome do Grupo de Mensageiros de São Jorge. E vê que louco, hoje é dia 23 de abril, dia de São Jorge. Porque São Jorge lá no sul, no sincretismo religioso é Ogum Guerreiro. O Mestre falou que a gente deveria colocar o nome de Mensageiros de São Jorge, mas eu achava muito pesado. Meu pai tinha uma loja que vendia artigos de Umbanda lá em Canoas, ali era o ponto de encontro dos capoeiras da cidade, porque eu trabalhava na loja, tinha sempre um som de Capoeira rolando, tinha uns berimbaus para vender. Lembro um dia que o Mestre Khorvo chegou lá e pegou um São Jorge que até hoje tenho lá em casa, e disse: ó esse Ogum aqui é o Ogum guerreiro do grupo de vocês.
Não querendo colocar Mensageiros de São Jorge, começamos a procurar um nome para o grupo. Fomos a terreiros e uma Mãe de Santo muito legal, que tomava conta do grupo lá do sul, falou que a gente podia botar o nome de Ajagunã.
Ajagunã é uma espécie de Oxalá, ao grosso modo falando, um Oxalá que era de paz, mas guerreiro. Era um Oxalá que guerreava pela paz. Ele era um guerreiro que tinha um motivo para ser guerreiro. A gente não era guerreiro na roda de Capoeira só por ser violento, porque a moda é dar porrada, nós queríamos ser aceitos como capoeiristas.
Tivemos então essa origem de guerreiros com um motivo. E quando a Mãe de Santo falou que o Ajagunã era essa energia, era um orixá guerreiro, mas guerreiro pela paz, a gente se identificou com esta história do Ajagunã. E o Mestre Nô é do Grupo Palmares. E aí o grupo virou Ajagunã de Palmares.
O primeiro lugar que dei aula foi no SAL (Sociedade Amigos da Lagoa). Em 1987 montamos a Associação Cultural de Capoeira Ajagunã de Palmares. Fizemos toda uma burocracia, porque a gente queria apoio pra Capoeira, trazer pra Ilha Mestres como o Nô, Curió, João Pequeno, Ferreirinha, Bobó. O Mestre Bobó foi um Mestre que influenciou todo mundo, era um Mestre com muita Capoeira. E essa era a idéia, trazer Capoeira para a Ilha.
Trouxemos vários Mestres, fizemos batismos legais e tínhamos a intenção de botar a Capoeira na rua. Então criamos a Roda no Mercado. O Mercado na época não rolava nada. Só rolava venda de peixe, coisa e tal. Fazer roda no Mercado Público era legal, pois havia a roda no Mercado Modelo em Salvador, tinha uma relação. A Capoeira deve estar na rua, brotando do movimento popular.
É importante a Capoeira estar na rua. Eu sempre falava isso, que o grande problema da Capoeira de hoje é que ela está em academias, onde se varrem todos os dias e não se pega mais o micróbio da rua, na mão, no sentido mais amplo do que eu digo isto. A Capoeira tem que tá na rua, com uma ralação com as coisas que se vivem no dia a dia. Na origem a Capoeira é isso. Vivemos numa sociedade cada vez mais individualista, cada um por si. Eu vejo na Capoeira uma negação a isto. Capoeira é grupo, necessita que existam pessoas para existir uma roda de Capoeira e isso é legal.
A Capoeira é uma necessidade de ser diferente, de ser o que a gente é. No dia onde todos forem iguais na Capoeira, todo mundo com a mesma ginga, mesmo uniforme, acabou a Capoeira. E isso é o princípio do nosso Grupo. Não Ter uniforme, não dar bola para graduação, não ter um chefe, não ter um líder. Cada um de nós põe um pouquinho de nós na nossa Capoeira.
O que acho legal entre os capoeiristas daqui de Florianópolis, que já se conhecem por muito tempo e jogam Capoeira, é que tem essa relação de amizade de que poucos outros lugares eu vi. Temos que manter isso e procurar ouvir mais música! É essa mensagem que eu queria deixar, procurar ir mais atrás do ritmo da roda, que é por aí que brota a Capoeira.
A força no Grupo Ajagunã era o ritmo quando se originou, era o jogo de Capoeira vamos lá, vamos jogá!